9 de set. de 2011

Analise de Alma minha gentil, que te partiste

 
 Alma minha gentil, que te partiste 

Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
 
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
 
E se vires que pode merecer-te
algüa cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
 
roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver te,
quão cedo de meus olhos te levou.
 
Esse texto trabalha com oposições entre “lá” e “cá”, “Céu” e “terra”, “repousa (...) eternamente” e “viva (...) sempre triste”, que podem ser interpretadas como uma antinomia entre feminino e masculino: à amada cabem os primeiros termos; ao eu-lírico, os segundos. Mas pode ser vista também uma oposição entre céu/espírito (ela), com características positivas, e terra/carne (ele), com características negativas. Esse é o contraste básico do neoplatonismo, de acordo com o qual a matéria, a carne, o corpóreo, é inferior ao ideal, ao espiritual. É dentro desse terreno que surge a expressão “amor platônico”, ou seja, aquele que se manifesta plenamente sem a necessidade do carnal, do corpóreo, preso apenas à idéia, ao pensamento. É a tese presente nos quartetos do outro soneto, “Transforma-se o amador na cousa amada”.
No entanto, os versos 7-8 de “Alma minha gentil, que te partiste” demonstram como Camões reinterpreta essa teoria. Basta observar que o eu-lírico pede que sua amada, um espírito, lembre-se do amor ardente (obviamente, de valor carnal) que ele já mostrara tão puro nos próprios olhos (obviamente, um valor espiritual). Há, portanto, uma fusão entre carnal e espiritual, ou seja, entre matéria e idéia – o espiritual tem elementos carnais e o carnal tem elementos espirituais. Essa mesma fusão é percebida em “Transforma-se o amador na cousa amada”, basicamente entre a idéia dos quartetos (primado do espiritual) e os tercetos (primado do carnal). Sua conclusão é a de que a idéia precisa da matéria para se realizar plenamente.
O soneto anteriormente exposto, ao opor masculino e feminino, acaba derramando elementos carnais ao homem e quase os eliminando por completo na mulher, que acaba se tornando uma figura etérea, divina. Eis outra clara influência petrarquista. É o que se percebe abaixo.
 
Quando da bela vista e doce riso,
tomando estão meus olhos mantimento,
tão enlevado sinto o pensamento
que me faz ver na terra o Paraíso.
 
Tanto do bem humano estou diviso,
que qualquer outro bem julgo por vento;
assi, que em caso tal, segundo sento,
assaz de pouco faz quem perde o siso.
 
Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque quem vossas cousas claro sente,
sentirá que não pode merecê-las.
 
Que de tanta estranheza sois ao mundo,
que não é de estranhar, Dama excelente,
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.
 
Note que as características da amada pertencem ao plano espiritual divino, o que faz o poeta ver o Paraíso e sentir-se distante do plano humano. A figura feminina é, portanto, extremamente valorizada, pois é ela quem permite voltar ao bem inicial, o Paraíso (do cristianismo) ou o Mundo das Idéias (do platonismo).

Um comentário:

  1. Quando da bela vista e doce riso,
    tomando estão meus olhos mantimento,
    tão enlevado sinto o pensamento
    que me faz ver na terra o Paraíso.

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