9 de set. de 2011

O VELHO DA HORTA


O VELHO DA HORTA
Apresentação

O VELHO DA HORTA, de Gil Vicente, que foi representado em 1512, é uma farsa ( a segunda do camarada, a primeira é o AUTO da Índia, lembras?). Farsa é uma expressão latina que quer dizer rechear, fartar. É burlesca, exagerada, próxima do ridículo e principalmente centrada sobre quadros da vida real. O gênero originou-se na Idade Média francesa, mas a princípio pretendia apenas causar o riso sem reflexão, o que NÃO ocorre em Gil Vicente que sempre utiliza a ironia como modo de criticar a sociedade que o circunda a fim de moralizá-la.
É uma obra escrita em versos, com métrica popular que descreve uma intriga engenhosamente construída. O tema é o do velho apaixonado. O Velho está no seu jardim. E os jardins são para Gil Vicente lugares privilegiados, sempre impregnados mais ou menos de eflúvios amorosos. Uma jovem vem ali para colher "cheiros para a panela". O Velho corteja-a e ela resiste.
A mulher do velho manda-o chamar para vir jantar, mas ele recusa-se e fica no jardim esquecido da sua idade e entoando canções de amor.
A Alcoviteira Branca Gil, vendo nele uma presa fácil, vem encontrar-se com ele. Consegue extorquir-lhe todo o dinheiro que pode levando-o a acreditar que lhe abrirá caminho até ao coração da jovem. Mas um alcaide, acompanhado por quatro beleguins, prende Branca Gil, que será castigada como merece.
E o Velho vem a saber que a moça por quem está apaixonado já se casou com um "noivo moço" que "não tirava os olhos dela".
Pouco mais seria necessário para fazer de tal tema um drama, isso até acontece algumas vezes na maneira como se exprime o Velho.
O velho apaixonado, apesar de tudo, continua sendo até ao fim ridículo e odioso. A simpatia dos espectadores vai toda para a jovem, apesar da crueldade com que ela o trata.
O que esta farsa exalta é a vitória da juventude e da vida contra a velhice e a morte. E acontece que, desta vez, a causa da juventude se confunde com a da moral, visto que no remate a jovem simpática se casa e o velho libidinoso é escarnecido.
Não perca de vista que há também uma crítica ao comportamento trovadoresco representado pelo velho e que é, como ele, ultrapassado.

A Narrativa
A obra começa com o velho que passeia por sua propriedade e reza o que mostra a influência medieval “Velho — Pater noster criador, Qui es in coelis, poderoso, Santificetur, Senhor,
nomen tuum vencedor, nos céu e terra piedoso. Adveniat a tua graça, regnum tuum sem mais guerra; voluntas tua”
Logo após entra a moça. Gil Vicente é um criador de tipos. A linguagem do Velho é um arremedo da poesia palaciana. A linguagem da Moça é zombeteira e se contrapõe à do velho : “Velho — Onde se criou tal flor? Eu diria que nos céus.
Moça — Mas no chão.
Velho — Pois damas se acharão que não são vosso sapato!
Moça — Ai! Como isso é tão vão, e como as lisonjas são de barato!
Velho — Que buscais vós cá, donzela, senhora, meu coração?
Moça — Vinha ao vosso hortelão, por cheiros para a panela.” A entrada do PARVO, criado do velho, mostra uma tentativa de chamar o patrão, inutilmente, para as coisas práticas do dia a dia: “Velho — Vai-te! Queres que t’açoite? Oh! Dou ao demo a intrujona sem saber!
Parvo — Diz que fosseis vós comer e não demoreis aqui.
Velho — Não quero comer, nem beber.
Parvo — Pois que haver cá de fazer?
Velho — Vai-te daí!”. A esposa do velho apenas entra para reafirmar o ridículo da situação.
Em seguida, entra em cena uma alcoviteira que oferece seus préstimos profissionais para garantir ao Velho a posse da amada. Mediante promessas de que o êxito está próximo, a mulher extorque toda a riqueza do Velho : “Velho — Dizede-me: quem é ela?
Alcoviteira — Vive junto com a Sé. Já! Já! Já! Bem sei quem é! É bonita como
estrela, uma rosinha de abril, uma frescura de maio, tão manhosa, tão sutil!...
Velho — Acudi-me Branca Gil, que desmaio.”. Finalmente, entra em cena a Justiça que prende a alcoviteira, mas retira do Velho a esperança de ver realizado tão louco amor: Alcaide — Vinde da parte de el-Rei!
Alcoviteira — Muita vida seja a sua. Não me leveis pela rua; deixar-me vós, que eu
me irei.
Beleguins — Sus! Andar!
Alcoviteira — Onde me quereis levar, ou quem me manda prender? Nunca havedes
de acabar de me prender e soltar? Não há poder!
Alcaide — Nada se pode fazer.
Alcoviteira — Está já a carocha aviada?!... Três vezes fui já açoitada, e, enfim, hei
de viver. No final, vem a notícia de que a jovem que motivou tão tresloucada paixão casou-se: Velho — Oh coitado! A minha é!
Mocinha — Agora, má hora e vossa! Vossa é a treva. Mas ela o noivo leva. Vai tão
leda, tão contente, uns cabelos como Eva; por certo que não se atreva toda a gente!
O Noivo, moço polido, não tirava os olhos dela, e ela dele.

ESTRUTURA DA OBRA

Quatro versos em redondilhas maiores e um quinto verso com três sílabas métricas. Os conceitos formulados pelo Velho acerca da natureza do amor são quinhentistas (Petrarca). A interlocução do Velho apaixonado, contagiado pelo gosto das antíteses e pelo conceito do conflito entre a razão e o sentimento amoroso:
“que morrer é acabar
e amor não tem saída"

Temática
O tema central é o amor tardio, extemporâneo, as conseqüências desastrosas desse amor e o patético e ridículo do assédio de um velho, que se julga irresistível, a uma jovem esperta e prudente.
Personagens

Parvo – criado do Velho com pouca cultura,limitando-se a chamar-lhe às realidades primárias da vida (o comer) incapaz de compreender grandes dramas.

Alcoviteira – figura pitoresca da baixa sociedade peninsular astuciosa e mistificadora,cuja moral independe de todas as leis da sensibilidade.

Alcaide – antigo oficial de Justiça.

Beleguins – agentes de polícia.

Mocinha – personagem que vai até a horta comprar.

Mulher – espera do Velho, Só interessa o prático

Velho – idoso, proprietário de uma horta, apaixona-se subitamente por uma jovem compradora. Mostra o comportamento palaciano, vassalo, é ridículo.

Moça – rapariga com certa experiência, com resposta ao pé da letra, confiante em si mesmo, disposta a zombar de um velho inofensivo,sem quebra da sua dignidade pessoal

A FARSA DE INES PEREIRA

A FARSA DE INÊS PEREIRA
A FIGURA FEMININA NUM MUNDO EM TRANSIÇÃO

Tatiana Alves Soares Caldas (UNESA e UniverCidade)


Mas coitada
da molher sempre encerrada
que pera seu passatempo
não tem desenfadamento
mais que agulha e almofada!
(Camões, Filodemo)
A Farsa de Inês Pereira, um dos mais conhecidos autos de Gil Vicente, teatrólogo do Humanismo português, conta a história de uma moça que recusa os papéis preestabelecidos e questiona o destino imposto à mulher na sociedade quinhentista. Com a ironia característica das farsas medievais, o auto apresenta um desfecho surpreendente, sugerindo as transformações que ocorriam à época. As personagens femininas do texto são marcantes – não por acaso, uma delas dá título à peça - e apresentam diferenças entre si, sendo expressivo o fato de cada uma refletir um aspecto da sociedade de então. Por meio dos diferentes discursos enunciados por elas, o texto desvela a ideologia de cada uma, num entrelaçamento de falas, provérbios e negações.
Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discurso – simboliza os valores de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e pré-renascentista, nosso estudo propõe uma análise do auto em questão à luz dessa transição, em seus aspectos histórico, social e lingüístico, no olhar desse escritor situado entre dois mundos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher.
Originalmente concebido como o desenvolvimento dramático do provérbio “mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”, a Farsa de Inês Pereira constitui-se no primeiro provérbio glosado em teatro. Trata-se de uma sátira com intenção moralizadora, apresentando traços de uma comédia de caráter e de costumes com tipos bem definidos. Além de explorar a dicotomia ser / parecer, o texto reflete sobre o momento histórico, na medida em que mostra a decadência da nobreza – um cavaleiro sem posses – e a ascensão de uma povo pré-burguês, na figura do parvo Pero Marques.
Segundo classificação proposta por Fidelino de Figueiredo, o auto estrutura-se a partir de sete quadros que se sucedem, organizados da seguinte forma: apresentação da vida de Inês, ainda solteira, com a mãe; conselhos de Lianor Vaz sobre o casamento; apresentação de Pero Marques; entrada do escudeiro; as desilusões do casamento; a viuvez de Inês Pereira e a vida de casada com Pero Marques.
A apresentação de Inês, já no início do texto, é marcada por uma atitude de revolta diante das entediantes tarefas impostas à mulher da época. Só, em casa, cantarola e amaldiçoa a própria condição:
Inês: Renego deste lavrar
e do primeiro que o usou!
Ao diabo que o eu dou,
que tão mau é d'aturar!
Ó Jesu! Que enfadamento,
e que raiva, e que tormento,
que cegueira, e que canseira!
Eu hei de buscar maneira
d'algum outro aviamento. (VICENTE, 1984: 303-304.)
A fala da protagonista é marcada pela amargura e pela revolta diante de um trabalho que lhe é odioso, sensações acentuadas pelos termos tormento, cegueira e canseira, refletindo o tédio presente em sua vida. Sua fala é repleta de expressões que sugerem uma crítica à falta de perspectivas para a mulher da época. Seu desencanto diz respeito, principalmente, à estagnação que vitimava as moças de então.
Isabel Allegro de Magalhães, em seu estudo O Tempo das Mulheres, destaca o tempo estático das mulheres na Idade Média, um tempo de ficar, em contraste com o tempo masculino, o tempo de partir, marcado por aventuras e por um espaço aberto e externo. Já às mulheres resta a clausura, o emparedamento. Note-se que é justamente nesse ponto que reside a queixa de Inês, que lamenta o marasmo de sua vida:
Inês: Já tenho a vida cansada
De jazer sempre dum cabo.
(...)
Esta é mais que morta.
São eu coruja ou corujo,
Ou são algum caramujo
Que não sai senão à porta? (Ibidem, p.304.)
A Farsa de Inês Pereira apresenta a condição da mulher encerrada em casa, mas, num vislumbre do novo tempo, mostra uma protagonista que se rebela, renitente, contra o destino que lhe é oferecido. Inês representa a fala destoante, pois nega os lugares-comuns, inclusive por meio de uma linguagem que defende a mudança. Seu posicionamento ideológico de recusa dos valores vigentes verifica-se, lingüisticamente, por um discurso repleto de exclamações – marcando o seu temperamento intempestivo - , e por indagações, como que a interrogar a própria condição:
Inês: Coitada, assi hei d’estar
encerrada nesta casa
como panela sem asa,
que sempre está num lugar?
E assi hão de ser logrados
dous dias amargurados,
que eu possa durar viva?
E assim hei d’estar cativa
Em poder de desfiados? (Ibidem, p. 304.)
O lamento de Inês esbarra na oposição da mãe, humilde e simples, cuja fala reflete o conformismo diante da sociedade de então. Além de censurar os desejos da filha, defende as regras e valores da época, ao aconselhar Inês a ter bom senso:
Mãe: Toda tu estás aquela...
Choram-te os filhos por pão?
(...)
Como queres tu casar
com fama de preguiçosa?
(...)
Não te apresses tu, Inês:
«Maior é o ano que o mês».
Quando te não precatares,
virão maridos a pares,
e filhos de três em três. (Ibidem, p. 305-306)
O discurso da Mãe, impregnado de lugares-comuns e provérbios populares, marca a reprodução de valores da época. Sua fala, que atua como contraponto à de Inês, é marcada pelo conservadorismo. Valendo-se de frases feitas, demonstra, no plano discursivo, sua identificação com o pensamento de então. Enquanto Inês simboliza a renovação, as demais personagens femininas representam a perpetuação de um pensamento ainda marcado por um ranço medieval. A Mãe, conformista, pensa que o destino natural da filha é o casamento e a maternidade, chegando mesmo a instruí-la a agir de modo a causar boa impressão no pretendente:
Mãe: Se este escudeiro há-de vir
e é homem de discrição
hás-te de pôr em feição,
e falar pouco e não rir.
E mais, Inês, não muito olhar,
e muito chão o menear,
porque te julguem por muda,
porque a moça sesuda
é ua perla pera amar. (Ibidem, p. 323-324)
A Mãe parece sugerir à moça que represente um papel para agradar ao rapaz, sugerindo a hipocrisia vigente. Expressivos são os conselhos dados à filha, demonstrando que os atributos femininos desejáveis então eram aqueles ligados à passividade e à submissão: falar pouco, não rir, não encarar e olhar para baixo, numa atitude subserviente condizente com a misoginia da época.
O conservadorismo da Mãe é visto também por ocasião da chegada de Lianor Vaz, que afirma ter sido violentada por um clérigo. Dignas de destaque são as palavras de ambas, uma valendo-se de subterfúgios para se justificar por não ter resistido ao ataque – estava cansada, teve um acesso de tosse, outro de riso – e outra desfiando todas as possibilidades, e demonstrando desconfiança, uma vez que Lianor não apresentava as marcas de laceração decorrentes do autoflagelo que deveria seguir-se ao estupro. Ambas comungam dos códigos vigentes, fato que pode ser percebido nos conselhos dados por Lianor a Inês:
Lianor: Não queirais ser tão senhora!
Casa, filha, que te preste,
não percas a ocasião.
Queres casar a prazer
No tempo d'agora, Inês?
Antes casa em que te pês,
que não é tempo d'escolher.
Sempre eu ouvi dizer:
«ou seja sapo ou sapinho,
ou marido ou maridinho,
tenha o que houver mister.»
Este é o certo caminho. (Ibidem, p. 312-313)
Em uma sociedade em que a única forma de sobrevivência feminina estava no matrimônio, a alcoviteira aconselha a moça a se casar, mesmo que isso a incomode, numa reprodução dos valores da época. Na repetição de ditados, um discurso que se limita a repetir os costumes e pensamentos de então, sem questioná-los:
Mãe: «Mata o cavalo de sela
e bô é o asno que me leva».
Lianor: Filha, «no Chão do Couce
quem não puder andar, choute.»
E «mais quero eu quem me adore
que quem faça com que chore». (Ibidem, p. 313)
Significativa é uma das imagens evocadas pela Mãe: mais vale um asno que a leve do que um cavalo que a derrube, numa retomada do mote e num prenúncio do desfecho do auto. Inês é firme em suas convicções: quer um homem culto, ainda que não seja rico, e que a faça feliz. Movida por essa ilusão, despreza o primeiro pretendente, o rude Pero Marques, filho de lavradores ricos, mas que peca pela rusticidade. Sua linguagem revela a timidez e a ignorância, além de marcar a sua ingenuidade, aspecto fundamental para o desfecho da peça. No processo de caracterização por meio da linguagem, os traços mais flagrantes de Pero Marques são evidenciados, gerando o repúdio de Inês. Seu discurso denuncia a sua ingenuidade, ora exagerando na formalidade, ora indicando a sua forma provinciana de se expressar:
Senhora amiga Inês Pereira,
Pêro Marquez, vosso amigo,
que ora estou na nossa aldea,
mesmo na vossa mercea
me encomendo. E mais digo,
digo que benza-nos Deus,
que vos fez de tão bom jeito;
bom prazer e bom proveito
veja vossa mãe de vós.
e de mi também assi,
ainda que eu vos vi,
estoutro dia de folgar,
e não quisestes bailar,
nem cantar presente mi... (Ibidem, p. 311)
Inês repudia o pretendente em virtude de sua rusticidade, chegando mesmo a depreciá-lo, criticando-lhe a simplicidade. Sua condição financeira não a atrai, e ela recusa o pedido de casamento. Tal recusa, nesse momento, é importante, pois marcará a diferença de perspectivas da protagonista no decorrer da história. Curiosamente, a ingenuidade de Pero Marques, que será vista ao final como algo extremamente conveniente, é agora motivo de escárnio por parte de Inês, que o ridiculariza por não se ter aproveitado de estarem a sós:
Inês: Pessoa conheço eu
que levara outro caminho...
Casai lá com um vilãozinho,
mais covarde que um judeu!
Se fora outro homem agora,
e me topara a tal hora,
estando assi às escuras,
falara-me mil doçuras,
ainda que mais não fora... (Ibidem, p. 318)
E, na sociedade em que o parecer vale mais do que o ser, surge a figura do escudeiro Brás da Mata, calculista e mentiroso, que finge viver de forma abastada, apenas para impressionar. Os Judeus casamenteiros, através das críticas que fazem entre si, desnudam a verdade sobre o Escudeiro, bem como o Moço que o acompanha, fazendo-nos sabedores de suas mentiras e dificuldades financeiras. Impressiona Inês de imediato, pois seu discurso é galante e é habilmente utilizado para conquistá-la. Curioso é o fato de tanto a má impressão deixada por Pero Marques quanto o deslumbramento inspirado por Brás da Mata serem decorrentes de seus discursos. Com um tom que remonta aos cantares de amor, o escudeiro encanta a moça:
Escudeiro: Antes que mais diga agora,
Deus vos salve, fresca rosa,
e vos dê por minha esposa,
por mulher e por senhora;
Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzela,
que vós sois, minha alma, aquela
que eu busco e que desejo.
Obrou bem a Natureza
em vos dar tal condição
que amais a discrição
muito mais que a riqueza.
(...)
Sei bem ler
e muito bem escrever,
e bom jugador de bola,
e quanto a tanger viola,
logo me ouvireis tanger. (Ibidem, p. 325-326)
Após casar-se com o escudeiro, Inês é rapidamente confrontada com a verdade: o marido revela-se um déspota, proibindo-a de cantar, chegando mesmo a ameaçá-la fisicamente em caso de desobediência. A reclusão de Inês fica ainda mais patente, pois ele informa que manterá trancada, sob permanente vigilância:
Escudeiro: Ó esposa, não faleis,
Que casar é cativeiro.
(...)
Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas m'andáveis vós?
Juro ao corpo de Deus
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar
Eu vos farei assoviar.
(...)
Vós não haveis de falar
com homem nem mulher que seja;
nem somente ir à igreja
não vos quero eu leixar
Já vos preguei as janelas,
porque vos não ponhais nelas;
estareis aqui encerrada,
nesta casa tão fechada,
como freira d'Oudivelas.
(...)
Vós não haveis de mandar
Em casa somente um pêlo.
Se eu disser: – isto é novelo –
Havei-lo de confirmar
E mais quando eu vier
De fora, haveis de tremer;
E cousa que vós digais
Não vos há-de valer mais
Que aquilo que eu quiser. (Ibidem, p. 332-335)
Arrependida de sua precipitação, Inês afirma que, se lhe fosse dada outra chance, não incorreria no mesmo equívoco. Significativamente, ela principia seu novo discurso com o mesmo termo com que antes amaldiçoava o lavrar: renego. Entretanto, o que ela renega aqui é a discrição, qualidade que a fez desposar o homem que a faz infeliz. A protagonista modifica-se ao longo do auto, passando por um processo de sofrimento e de aprendizagem:
Inês: Renego da discrição,
comendo ao demo o aviso,
que sempre cuidei que nisso
estava a boa condição;
cuidei que fossem cavaleiros
fidalgos e escudeiros,
não cheos de desvarios,
e em suas casas macios,
e na guerra lastimeiros.
Juro em todo meu sentido
que, se solteira me vejo,
assi como eu desejo,
que eu saiba escolher marido,
à boa fé, sem mau engano,
pacífico todo o ano,
e que ande a meu mandar...
Havia-me eu de vingar
deste mal e deste dano! (Ibidem, p. 337)
A trama sofre uma reviravolta, pois Inês é informada de que o escudeiro havia sido morto. Tal acontecimento possibilita que ela ponha em prática sua nova visão de mundo. Pero Marques, ainda mais abastado, volta a cortejá-la, e a moça agora aceita seu pedido:
Inês: Andar! Pero Marques seja!
Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
asno que me leve quero,
e não cavalo folão;
antes lebre que leão,
antes lavrador que Nero. (Ibidem, p. 340)
Após ter sofrido nas mãos do marido, Inês chega à conclusão: mais vale o asno que a carregue do que o cavalo que a derrube. Numa sociedade em transição, os valores aos poucos se modificam: mais vale o camponês simplório – o asno – do que o representante de uma aristocracia decadente – o cavalo – que simbolicamente a derruba. Dessa vez, a moça é quem dita as regras, com as quais Pero Marques concorda. Em dado momento, Inês reencontra um ermitão a quem desprezara no passado, e o texto sugere que ela o tomará como amante. A referência ao asno que a carrega assume aqui uma dimensão literal, uma vez que o casal tem de cruzar um rio, e ela pede que ele a leve às costas. A passagem, que termina o auto, mostra-nos ainda o marido fazendo-lhe as vontades, e Inês, numa dose de ironia, começa a cantarolar, e o marido a acompanha no refrão Pois assi se fazem as cousas, num indício de que Inês dará as ordens, cabendo a ele apenas repetir o refrão, uma frase que sintetiza a sua aquiescência:
Inês: Pois eu hei só de cantar
e vós me respondereis,
Cada vez que eu acabar:
Pois assi se fazem as cousas.
Canta Inês Pereira:
Inês: Marido cuco me levades,
e mais duas lousas.
Pero: Pois assi se fazem as cousas.
Inês: Bem sabedes vós, marido,
quanto vos amo;
sempre fostes percebido
pera gamo.
Carregado ides, noss'amo,
Com duas lousas.
Pero: Pois assi se fazem as cousas
Inês: Bem sabedes vós, marido,
quanto vos quero;
sempre fostes percebido
pera cervo.
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.
Pero: Pois assi se fazem as cousas (Ibidem, p. 346-347).
A ingenuidade do inocente Pero impede-o de perceber o comportamento de Inês. Ela, irônica, mostra que o fará de bobo, num discurso em que o chama de gamo, símbolo do homem traído, e em seguida de cervo, numa exploração lúdica do léxico, que reforça a idéia do gamo, e remete, por semelhança fônica, à subserviência do servo. Ambos – traição e submissão – marcarão o casamento de ambos. Observe-se que a mudança de postura de Inês reflete os valores do mundo em que está inserida: do encantamento e da fantasia em relação à figura cortês do cavaleiro – imagem que significativamente desmorona no decorrer da farsa – , a protagonista percebe as vantagens de aceitar a chegada do simplório porém bem situado Pero Marques, numa troca que sugere as inúmeras mudanças a que a sociedade assistia. O mote da farsa – antes quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube - constitui a síntese estrutural do auto, e a dicotomia que atravessa o texto metaforiza a transição da sociedade medieval para a renascentista. Gil Vicente, um homem situado entre dois mundos, soube como poucos escrever a história de uma sociedade ainda guiada por um pensamento religioso e medieval, mas que se descobria aos poucos tão mais valiosa quando assinada pelo homem.
BIBLIOGRAFIA
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo das mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.
VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. Introdução e estudo crítico pela Prof.ª Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.


AUTO DA BARCA DO INFERNO

ANALISE DO AUTO DA BARCA DO INFERNO

Antes de mais nada, “auto” é uma designação genérica para peça, pequena representação teatral. Originário na Idade Média, tinha de início caráter religioso; depois tornou-se popular, para distração do povo. Foi Gil Vicente (1465-c. 1537) que introduziu esse tipo de teatro em Portugal.
O “Auto da Barca do Inferno” (c. 1517) representa o juízo final católico de forma satírica e com forte apelo moral. O cenário é uma espécie de porto, onde se encontram duas barcas: uma com destino ao inferno, comandada pelo diabo, e a outra, com destino ao paraíso, comandada por um anjo. Ambos os comandantes aguardam os mortos, que são as almas que seguirão ao paraíso ou ao inferno.
Resumo do enredo
Os mortos começam a chegar. Um fidalgo é o primeiro. Ele representa a nobreza, e é condenado ao inferno por seus pecados, tirania e luxúria. O diabo ordena ao fidalgo que embarque. Mas ele, arrogante, julga-se merecedor do paraíso, pois deixou muita gente rezando por ele. Recusado pelo anjo, encaminha-se, frustrado, para a barca do inferno; mas tenta convencer o diabo a deixá-lo a rever sua amada, pois esta “sente muito” sua falta. O diabo destrói seu argumento, afirmando que ela o estava enganando.
Um agiota chega a seguir. Ele também é condenado ao inferno por ganância e avareza. Tenta convencer o anjo a ir para o céu, mas não consegue. Também pede ao diabo que o deixe voltar para pegar a riqueza que acumulou, mas é impedido e acaba na barca do inferno.
O terceiro indivíduo a chegar é o parvo (um tolo, ingênuo). O diabo tenta convencê-lo a entrar na barca do inferno; quando o parvo descobre qual é o destino dela, vai falar com o anjo. Este, agraciando-o por sua humildade, permite-lhe entrar na barca do céu.
Mais personagens
A alma seguinte é a de um sapateiro, com todos os seus instrumentos de trabalho. Durante sua vida enganou muitas pessoas, e tenta enganar também o diabo. Como não consegue, recorre ao anjo, que o condena como alguém que roubou do povo.
O frade é o quinto a chegar… com sua amante. Chega cantarolando. Sente-se ofendido quando o diabo o convida a entrar na barca do inferno, pois, sendo representante religioso, crê que teria perdão. Foi, porém, condenado ao inferno por falso moralismo religioso.
Brísida Vaz, feiticeira e alcoviteira, é recebida pelo diabo, que lhe diz que seu o maior bem são “seiscentos virgos postiços”. Virgo é hímen, representa a virgindade. Compreendemos que essa mulher prostituiu muitas meninas virgens, e “postiço” nos faz acreditar que enganara seiscentos homens, dizendo que tais meninas eram virgens. Brísida Vaz tenta convencer o anjo a levá-la na barca do céu inutilmente. Ela é condenada por prostituição e feitiçaria.
Judeus e “cristãos novos”
A seguir, é a vez do judeu, que chega acompanhado por um bode. Encaminha-se direto ao diabo, pedindo para embarcar, mas até o diabo recusa-se a levá-lo. Ele tenta subornar o diabo, porém este, com a desculpa de não transportar bodes, o aconselha a procurar outra barca. O judeu fala então com o anjo, porém não consegue aproximar-se dele: é impedido, acusado de não aceitar o cristianismo. Por fim, o diabo aceita levar o judeu e seu bode, mas não dentro de sua barca, e, sim, rebocados.
Tal trecho faz-nos pensar em preconceito anti-semita. É necessário entender, porém, que durante o reinado de dom Manuel, de 1495-1521, muitos judeus foram expulsos de Portugal, e os que ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados de “cristãos novos”. Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito da época.
Representantes do judiciário
O corregedor e o procurador, representantes do judiciário, chegam, a seguir, trazendo livros e processos. Quando convidados pelo diabo para embarcarem, começam a tecer suas defesas e encaminham-se ao anjo. Na barca do céu, o anjo os impede de entrar: são condenados à barca do inferno por manipularem a justiça em benefício próprio. Ambos farão companhia à Brísida Vaz, revelando certa familiaridade com a cafetina – o que nos faz crer em trocas de serviços entre eles e ela…
O próximo a chegar é o enforcado, que acredita ter perdão para seus pecados, pois em vida foi julgado e enforcado. Mas também é condenado a ir ao inferno por corrupção.
Por fim, chegam à barca quatro cavaleiros que lutaram e morreram defendendo o cristianismo. Estes são recebidos pelo anjo e perdoados imediatamente.
O bem e o mal
Como você percebeu, todos os personagens que têm como destino o inferno possuem algumas características comuns, chegam trazendo consigo objetos terrenos, representando seu apego à vida; por isso, tentam voltar. E os personagens a quem se oferece o céu são cristãos e puros. Você pode perceber que o mundo aqui ironizado pelo autor é maniqueísta: o bem e o mal; o bom e o ruim são metades de um mundo moral simplificado.
Características
O “Auto da Barca do Inferno” faz parte de uma trilogia (Autos da Barca “da Glória”, “do Inferno” e “do Purgatório”). Escrito em versos de sete sílabas poéticas, possui apenas um ato, dividido em várias cenas. A linguagem entre os personagens é coloquial – e é através das falas que podemos classificar a condição social de cada um dos personagens.
Valores de duas épocas
Escrita na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, a obra oscila entre os seus valores morais de duas épocas: ao mesmo tempo que há um severa crítica à sociedade, típica da Idade Moderna, a obra também está religiosamente voltada para a figura de Deus, o que é uma característica medieval.
A sátira social é implacável e coloca em prática um lema, que é “rindo, corrigem-se os defeitos da sociedade”. A obra tem, portanto, valor educativo muito forte. A sátira vicentina serve para nos mostrar, tocando nas feridas sociais de seu tempo, que havia um mundo melhor, em que todos eram melhores. Mas é um mundo perdido, infelizmente. Ou seja, a mensagem final, por trás dos risos, é um tanto pessimista.

Busque Amor novas artes, novo engenho,

essimista em relação à vida. Note como tal se observa no poema abaixo.
 
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.
 
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
 
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
 
Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
 
A experiência amorosa, como se vê, nem sempre é apresentada como positiva. Aliás, a lírica camoniana aborda as múltiplas facetas desse sentimento, desde o encantamento graças ao contato com o objeto amado até a dor provocada pela frustração de expectativas ou pelo fim de um relacionamento. Mas o mais chamativo, como se disse, é este segundo aspecto, que faz o poeta encarar o conhecimento amoroso como produtor de dores e decepções. Ainda assim, é curioso notar que o poeta ainda consegue, por pior que seja a sua situação, expressar, no quinto verso, uma ironia, amarga, mas que revela um caráter espirituoso.
No entanto, seu lirismo não se coloca restrito ao amor. Há também em Camões uma abordagem filosófica que se envereda pelos problemas que afetam a existência humana, como se detecta no texto a seguir.
 
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
 
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
 
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria, e, enfim,
converte em choro o doce canto.
 
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
 
Enfrenta-se aqui um tema antiqüíssimo, presente até no livro bíblico Eclesiastes e na literatura das antigas Grécia e Roma, que é a efemeridade, ou seja, o caráter passageiro dos bens da vida.  Sua conclusão, no entanto, acaba por assumir, por meio de sua idéia paradoxal, um tom típico do Maneirismo, lembrando o tom dos textos barrocos.
Portanto, entende-se por que a obra lírica de Camões, principalmente os sonetos, acaba por se tornar um monumento da língua portuguesa, não apenas por causa da maneira como sua linguagem é elaborada, com graça, equilíbrio e maestria, mas também pelo denso conteúdo que expressa e toca fundo nas experiências humanas. Seus sonetos, pois, assumem facilmente a posição de clássicos.

Analise de Alma minha gentil, que te partiste

 
 Alma minha gentil, que te partiste 

Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
 
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
 
E se vires que pode merecer-te
algüa cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
 
roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver te,
quão cedo de meus olhos te levou.
 
Esse texto trabalha com oposições entre “lá” e “cá”, “Céu” e “terra”, “repousa (...) eternamente” e “viva (...) sempre triste”, que podem ser interpretadas como uma antinomia entre feminino e masculino: à amada cabem os primeiros termos; ao eu-lírico, os segundos. Mas pode ser vista também uma oposição entre céu/espírito (ela), com características positivas, e terra/carne (ele), com características negativas. Esse é o contraste básico do neoplatonismo, de acordo com o qual a matéria, a carne, o corpóreo, é inferior ao ideal, ao espiritual. É dentro desse terreno que surge a expressão “amor platônico”, ou seja, aquele que se manifesta plenamente sem a necessidade do carnal, do corpóreo, preso apenas à idéia, ao pensamento. É a tese presente nos quartetos do outro soneto, “Transforma-se o amador na cousa amada”.
No entanto, os versos 7-8 de “Alma minha gentil, que te partiste” demonstram como Camões reinterpreta essa teoria. Basta observar que o eu-lírico pede que sua amada, um espírito, lembre-se do amor ardente (obviamente, de valor carnal) que ele já mostrara tão puro nos próprios olhos (obviamente, um valor espiritual). Há, portanto, uma fusão entre carnal e espiritual, ou seja, entre matéria e idéia – o espiritual tem elementos carnais e o carnal tem elementos espirituais. Essa mesma fusão é percebida em “Transforma-se o amador na cousa amada”, basicamente entre a idéia dos quartetos (primado do espiritual) e os tercetos (primado do carnal). Sua conclusão é a de que a idéia precisa da matéria para se realizar plenamente.
O soneto anteriormente exposto, ao opor masculino e feminino, acaba derramando elementos carnais ao homem e quase os eliminando por completo na mulher, que acaba se tornando uma figura etérea, divina. Eis outra clara influência petrarquista. É o que se percebe abaixo.
 
Quando da bela vista e doce riso,
tomando estão meus olhos mantimento,
tão enlevado sinto o pensamento
que me faz ver na terra o Paraíso.
 
Tanto do bem humano estou diviso,
que qualquer outro bem julgo por vento;
assi, que em caso tal, segundo sento,
assaz de pouco faz quem perde o siso.
 
Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
porque quem vossas cousas claro sente,
sentirá que não pode merecê-las.
 
Que de tanta estranheza sois ao mundo,
que não é de estranhar, Dama excelente,
que quem vos fez, fizesse Céu e estrelas.
 
Note que as características da amada pertencem ao plano espiritual divino, o que faz o poeta ver o Paraíso e sentir-se distante do plano humano. A figura feminina é, portanto, extremamente valorizada, pois é ela quem permite voltar ao bem inicial, o Paraíso (do cristianismo) ou o Mundo das Idéias (do platonismo).

ANÁLISE TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COISA AMADA

Poesias de Luís Vaz de Camões

ANÁLISE

Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

AMOR É FOGO

 Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
ANÁLISE DO SONETO “AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER” DE LUÍS VAZ DE CAMÕES

O soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Luís Vaz de Camões, trata de um conceito do amor na concepção do neoplatonismo, pois, acentua-se o dualismo platônico entre sensível e inteligível, matéria e espírito, finito e infinito, mundo e Deus. Este soneto é uma definição poética do amor. Como se Camões quisesse definir este sentimento indefinível e explicar o inexplicável, colocando imensos contrastes para caracterizar este “mistério”. Para Camões, o Amor (com A maiúscula) é um tipo de ideal superior, perfeito e único, pelo qual há o anseio de atingi-lo, mas como somos imperfeitos e decaídos, somos ao mesmo tempo incapazes de chegar a esse ideal. O amor é visto, então, como um sentimento que envolve sensações e que ocorre quando existe um senso de identidade entre pessoas com identidades bem definidas e diferenciadas. Existe a dualidade da incerteza do amor “físico” (com a minúscula) com o Amor ideal, assim o amor é um tipo de “imitação” do Amor, na realidade o autor procura compreender e definir o processo amoroso. Conceituando a natureza paradoxal do amor, o soneto ressalta em enunciados antitéticos, compondo um todo lógico, o caráter paradoxal do sentimento amoroso. Esclarecendo-se, entretanto, que tais contradições são, por vezes, aparentes, pois, a segunda pane de cada verso funciona como complemento da primeira, enfatizando-a por intermédio da aproximação de realidades distintas. O aspecto material, sensível “ferida que dói”, “é dor que desatina” é oposto ao espiritual “em que se sente”, “sem doer”, como, de resto pode-se observar ao longo de todo o soneto, culminando com a indagação final, a traduzir toda a perplexidade diante da total impossibilidade de se compreender o próprio amor. Camões parece estar coberto de razão ao afirmar que "tão contrário a si é o mesmo amor", mas diversamente do percurso camoniano, ele aponta para a alma, então, o poeta parece chegar a uma conclusão, expressada pela interrogação no último terceto. A forma do soneto corresponde ao tema do poema. Podemos dizer que a primeira vista é um jogo renascentista, mas depois descobrimos o sentido profundo do poema. E nisso encontramos a arte do autor – nesta capacidade de tomar de leve (como se fosse jogo) um tema que nos faz pensar profundamente nos problemas psicológicos bastante complicados. Portanto esse soneto trata de uma verdade enunciada com aparência de mentira.

LÍRICA CAMONIANA

A lírica camoniana


Na obra lírica de Camões confluem três correntes líricas: a da poesia peninsular, constituída por vilancetes, cantigas, esparsas, endechas, cartas, trovas e outras longas composições (são poemas em redondilha); a corrente italiana, realizada em sonetos, canções, composições em oitava rima e sextinas (são poemas da medida nova ou decassílabos); a corrente greco-latina é composta por éclogas e elegias.
Há ainda as sátiras e as cartas, moldadas em metro tradicional.

Em vida, Camões viu apenas publicadas uma ode a apresentar Garcia de Orta em Colóquios dos Simples e Drogas (1563), o soneto "Vós, ninfas da gangética espessura", a elegia "Depois que Magalhães teve tecida", ambos dedicados a D. Leonis Pereira, insertos no livro de Magalhães Gândavo: História da Província de Santa Cruz (1576).

Diogo de Couto informa-nos na Década VIII que encontrou Camões em Moçambique "vivendo de amigos", trabalhando em "suas Lusíadas" e no seu Parnaso - "livro de muita doutrina e filosofia" que lhe foi roubado e "nunca mais - refere o historiador - dei fé dele".

O desaparecimento do Parnaso deu lugar à incorporação de poesias em Rimas que certamente não lhe pertencem.
A primeira edição data de 1595, feita por F. Rodrigues Lobo Soropita.

Manifestam-se no lirismo camoniano dois tipos de estilo: o estilo engenhoso, na tradição do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, presente em quase todas as redondilhas e em alguns sonetos, que se fundamenta na coisificação das palavras e das realidades sensíveis e manifesta subtileza e imaginação; o estilo clássico, em que as palavras pretendem captar uma realidade externa ou interna, com existência independente das mesmas.

A temática é variada, podendo afirmar-se que gravita à volta de três eixos: o galanteio amoroso, mais ou menos circunstancial; os temas psicológicos, quase sempre analisando a paixão amorosa e os temas filosóficos, como a desarmonia entre o Merecimento e o Destino, o direito à felicidade e a impossibilidade de a alcançar; a justiça aparente e a justiça transcendente.
São temas comuns aos bons escritores renascentistas, mas o tom em que Camões os trata é pessoal, nele transparecendo a aliança entre a meditação e a experiência.


Influência clássica renascentista

Em Luís de Camões, a tradição do lirismo peninsular coexistiu com a estética clássica renascentista e o maneirismo que marcaram o seu tempo. Juntamente com a poesia de sabor trovadoresco, surge uma poesia cujos modelos formais e temática ("medida nova") revelam a cultura humanística e clássica do autor, que soube encontrar em Platão, Petrarca ou Dante um mentor ou um mestre para o caminho que trilhou e explorou com sabedoria, com entusiasmo e com a paixão do seu temperamento.

Cantando o amor sublime ou a relação mais fútil, o poeta soube, como poucos, definir-se e definir a alma humana, oferecendo-nos a sua experiência de vida ou o mundo no seu desconcerto, com os seus problemas sociais e morais e a eterna questão do mal que aflige a Humanidade. Os temas da sua lírica são vastos e variados, indo da análise da sua vida interior à caracterização da realidade do seu tempo ou à busca do dimensionamento do homem universal.


Na poesia com influência clássica e renascentista, fruto das novas ideias trazidas, de Itália, por Sá de Miranda e António Ferreira, verifica-se um alargamento dos temas e a colocação do ser humano no centro de todas as preocupações.
Desta fase, merece destaque o tratamento de certos temas: o Amor platónico, a saudade, o destino, a beleza suprema, a mudança, o desconcerto do mundo, o elogio dos heróis, os ensinamentos morais, sociais e filosóficos, a mulher vista à luz do petrarquismo e do dantismo, a sensualidade, a experiência da vida.
A nível formal, o verso é o da medida nova, com o uso do verso decassílabo heróico (de acentuação nas 6.ª e 10.ª sílabas) ou sáfico (nas 4.ª, 8.ª e 10.ª), ou ainda, com o uso (menos frequente) do verso hexassílabo. As formas poéticas mais frequentes são o soneto, a canção, a sextina, a écloga, a elegia e a ode.


Influência tradicional na lírica camoniana

Na lírica camoniana, a "medida nova", ou seja, a poesia que segue os modelos estéticos renascentistas, surge a par da poesia com sabor trovadoresco dos Cancioneiros ("medida velha").


Na poesia de influência tradicional, é evidente o aproveitamento da temática da poesia trovadoresca e das formas palacianas. Assim, encontramos temas tradicionais e populares (o amor, a saudade, a beleza da mulher, o contacto com a natureza, a ida à fonte...), o ambiente cortesão com as suas "cousas de folgar" e as suas futilidades, o humor. A nível formal, o verso é o da medida velha: com 5 sílabas métricas (redondilha menor) ou com 7 (redondilha maior). As formas poéticas mais frequentes são as da poesia palaciana do século anterior: os vilancetes, as cantigas, as esparsas, e as trovas.

ESTRUTURA DE "OS LUSÍADAS

Noção de epopeia topo

Uma epopeia é a narrativa dos feitos grandiosos de um indivíduo ou de um povo. Nesta definição encontramos os elementos essenciais de qualquer texto épico.
Enquadra-se no género narrativo - é sempre um relato de acontecimentos: o sujeito da enunciação assume-se como narrador e dispõe-se a fazer o relato de um acontecimento ou conjunto de acontecimentos a um determinado público; a dimensão e a natureza do público depende do assunto objecto do relato, presumindo-se que será sempre constituído pelas pessoas nele interessadas; se o assunto disser respeito a uma determinada comunidade o público será mais restrito; se o assunto tiver um interesse mais vasto, o público será mais alargado, podendo abranger potencialmente toda a humanidade.
O assunto deverá ter um carácter excepcional. Nem todas as acções são susceptíveis de serem tratadas de forma épica; é necessário que, no entendimento do narrador (e do seu público), essas acções se distanciem dos acontecimentos vulgares, assumam um carácter de excepcionalidade. Nas epopeias primitivas os feitos narrados são de carácter lendário, embora essas ficções tenham sempre um fundo histórico. Em algumas epopeias de imitação, no entanto, o assunto é histórico.
Os eventos exigem um agente e, tratando-se de eventos excepcionais, o agente deverá ser igualmente um ser de excepção, um ser que, pela sua origem, pelas suas características, se distancie, se imponha aos seus semelhantes (herói), pouco importando que se trate de um indivíduo ou de uma colectividade (herói individual ou herói colectivo). Na Ilíada e na Odisseia, escritas no século VI a.C., o herói é individual: num caso, Aquiles; no outro, Ulisses. N' Os Lusíadas o herói é, como o título indica, colectivo - o povo português. Já na Eneida de Virgílio há uma certa ambiguidade: o herói parece ser individual, Eneias, mas na realidade o objectivo do poema é exaltar o povo romano.
Característica de todas as epopeias é a utilização de um estilo elevado, correspondente à grandiosidade do assunto, e que se traduz na selecção vocabular, na construção frásica extremamente elaborada e na abundante utilização de recursos estilísticos.

Estrutura externa topo

Os Lusíadas estão divididos em dez cantos, cada um deles com um número variável de estrofes, que, no total, somam 1102. Essas estrofes são todas oitavas de decassílabos heróicos, obedecendo ao esquema rimático "abababcc" (rimas cruzadas, nos seis primeiros versos, e emparelhada, nos dois últimos).

Estrutura interna topo

Camões respeitou com bastante fidelidade a estrutura clássica da epopeia. N' Os Lusíadas são claramente identificáveis quatro partes.
Proposição - O poeta começa por declarar aquilo que se propõe fazer, indicando de forma sucinta o assunto da sua narrativa; propõe-se, afinal, tornar conhecidos os navegadores que tornaram possível o império português no oriente, os reis que promoveram a expansão da fé e do império, bem como todos aqueles que se tornam dignos de admiração pelos seus feitos.
Invocação - O poeta dirige-se às Tágides (ninfas do Tejo), para lhes pedir o estilo e eloquência necessários à execução da sua obra; um assunto tão grandioso exigia um estilo elevado, uma eloquência superior; daí a necessidade de solicitar o auxílio das entidades protectoras dos artistas.
Dedicatória - É a parte em que o poeta oferece a sua obra ao rei D. Sebastião. A dedicatória não fazia parte da estrutura das epopeias primitivas; trata-se de uma inovação posterior, que reflecte o estatuto do artista, intelectualmente superior, mas social e economicamente dependente de um mecenas, um protector.
Narração - Constitui o núcleo fundamental da epopeia. Aqui, o poeta procura concretizar aquilo que se propôs fazer na "proposição".

Estrutura da narração topo

A narração d' Os Lusíadas tem uma estrutura muito complexa, o que decorre dos objectivos que o poeta se propôs. Desenvolve-se em quatro planos diferentes, mas estreitamente articulados entre si.
Plano da viagem - A acção central do poema é a viagem de Vasco da Gama. Escrevendo mais de meio século depois, Luís de Camões tinha já o distanciamento suficiente para perceber a importância histórica desse acontecimento, devido às alterações que provocou, tanto em Portugal, como na Europa. Por essa razão considerou a primeira viagem marítima à Índia como o episódio mais significativo da história de Portugal.
No entanto, tratava-se de um acontecimento relativamente recente e historicamente documentado. Para manter a verosimilhança, o poeta estava obrigado a fazer um relato relativamente objectivo e potencialmente monótono, o que constituía um perigo fatal para o seu projecto épico. Daí que Camões tenha sentido a necessidade de introduzir um segundo nível narrativo.
Plano mitológico (conflito entre os deuses pagãos) - Camões imaginou um conflito entre os deuses pagãos: Baco opõe-se à chegada dos portugueses à Índia, pois receia que o seu prestígio seja colocado em segundo plano pela glória dos portugueses, enquanto Vénus, apoiada por Marte, os protege.
Pode parecer estranho que Camões incluísse num poema destinado a exaltar um povo cristão os deuses pagãos, mas algumas razões permitem compreender essa atitude:
1) Como vimos, a simples narrativa da viagem seria algo monótona, tanto mais que Vasco da Gama e os seus marinheiros têm um carácter rígido, quase inumano: são determinados e inflexíveis, imunes às hesitações, à dúvida, às angústias. Não há ao nível da viagem qualquer conflito. Para introduzir o necessário dramatismo na narrativa, Camões teve que imaginar um conflito externo, o conflito entre Vénus e Baco.
2) Os poemas épicos renascentistas são epopeias de imitação e como tal sujeitas a regras estritas. Uma dessas regras impunha ao poeta a introdução de episódios maravilhosos, envolvendo quase sempre deuses da mitologia greco-latina, à semelhança do que acontecia nos poemas homéricos ou na Eneida.
3) Finalmente, o recurso aos deuses pagãos é mais uma forma de o poeta engrandecer os feitos dos portugueses. Nas suas intervenções, os deuses frequentemente referem-se-lhe de forma elogiosa. Além disso, o simples facto de a disputa entre os deuses ter como objecto os portugueses é já uma forma indirecta de os exaltar.
Plano da História de Portugal - O objectivo de Camões era enaltecer o povo português e não apenas um ou alguns dos seus representantes mais ilustres. Não podia por isso limitar a matéria épica à viagem de Vasco da Gama. Tinha que introduzir na narrativa todas aquelas figuras e acontecimentos que, no seu conjunto, afirmavam o valor dos portugueses ao longo dos tempos. E fê-lo, recorrendo a duas narrativas secundárias, inseridas na narrativa da viagem, cujo narrador é o poeta.
1) Narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde - Ao chegar a este porto indiano, o rei recebe-o e procura saber quem é ele e donde vem. Para lhe responder, Vasco da Gama localiza o reino de Portugal na Europa e conta-lhe a História de Portugal até ao reinado de D. Manuel. Ao chegar a este ponto, conta inclusivamente a sua própria viagem desde a saída de Lisboa até chegarem ao Oceano Índico, visto que a narrativa principal iniciara-se in media res, isto é quando a armada já se encontrava em frente às costas de Moçambique.
2) Narrativa de Paulo da Gama ao Catual - Mais tarde surge outra narrativa secundária. Em Calecut, uma personalidade hindu (Catual) visita o navio de Paulo da Gama, que se encontra enfeitado com bandeiras alusivas a figuras históricas portuguesas. O visitante pergunta-lhe o significado daquelas bandeiras, o que dá a Paulo da Gama o pretexto para narrar vários episódios da História de Portugal.
3) Profecias - Os acontecimentos posteriores à viagem de Vasco da Gama não podiam ser introduzidos na narrativa como factos históricos. Para isso, Camões recorreu a profecias colocadas na boca de Júpiter, Adamastor e Thétis, principalmente.
Plano das considerações do poeta - Por vezes, normalmente em final de canto, a narração é interrompida para o poeta apresentar reflexões de carácter pessoal sobre assuntos diversos, a propósito dos factos narrados.

Análise da Proposição topo

As armas e os barões assinalados 
          Que, da ocidental praia Lusitana,
          Por mares nunca dantes navegados
          Passaram ainda além da Taprobana,
          Em perigos e guerras esforçados
          Mais do que prometia a força humana,
          E entre gente remota edificaram
          Novo Reino , que tanto sublimaram;
 
          E também as memórias gloriosas
          Daqueles Reis que foram dilatando
          A Fé, o Império, e as terras viciosas 
          De África e de Ásia andaram devastando,
          E aqueles que por obras valerosas
          Se vão da lei da Morte  libertando;
          Cantando espalharei por toda a parte,
          Se a tanto me ajudar o engenho  e arte .
          
          Cessem do sábio Grego  e do Troiano 
          As navegações grandes que fizeram;
          Cale-se de Alexandro  e de Trajano 
          A fama das vitórias que tiveram;
          Que eu canto o peito ilustre lusitano ,
          A quem Neptuno e Marte  obedeceram.
          Cesse tudo o que a Musa antiga  canta,
          Que outro valor mais alto se alevanta.
          
          Os Lusíadas (I, 1-3)
Como vimos, a finalidade da proposição, em qualquer epopeia, é a enunciação do assunto que o poeta se propõe tratar. Assim é, também, n' Os Lusíadas: Camões está decidido a tornar conhecido em todo o mundo o valor do povo português ("o peito ilustre lusitano"). E para isso estrutura a sua proposição em duas partes: nas duas estâncias iniciais, enuncia os heróis que vai cantar; na segunda parte, constituída pela terceira estrofe, estabelece um confronto entre os portugueses e os grandes heróis da Antiguidade, afirmando a superioridade dos primeiros sobre os segundos.
Que o herói desta epopeia é colectivo, é um facto incontestável. Quanto a isso, o próprio título é inequívoco: os "lusíadas" são, afinal, os portugueses - todos, não apenas os passados, mas até os presentes e futuros, na medida em que assumam as virtudes que caracterizam, no entendimento do poeta, o povo português e que ele sintetiza, na dedicatória a D. Sebastião, desta forma:
amor da pátria, não movido
          De prémio vil, mas alto e quase eterno 
O facto de o seu herói ser colectivo e a sua acção se estender por um intervalo de tempo muito vasto permite-lhe desdobrá-lo em subgrupos, conforme verificaremos a seguir. O plural utilizado para designar cada um deles confirma o carácter colectivo do herói: "barões assinalados", "Reis", "aqueles".
A inversão da ordem sintáctica nessa primeira frase, que engloba as duas estâncias iniciais, pode tornar difícil, à primeira leitura, a compreensão do texto. A ordem normal seria esta: Cantando, espalharei por toda a parte as armas e os barões...
Pode esquematizar-se o conteúdo dessas duas estrofes da seguinte maneira:
Através da poesia,
se tiver talento para isso,
tornarei conhecidos em todo o mundo

os homens ilustres
que fundaram o império português do Oriente

os reis, de D. João I a D. Manuel,
que expandiram a fé cristã e o império português

todos os portugueses
dignos de admiração pelos seus feitos.
Pelo esquema, vemos que Camões apresenta três grupos de agentes ("agentes" e não heróis, porque herói é "o peito ilustre lusitano").
O primeiro é constituído pelos "barões assinalados", responsáveis pela criação do império português na Ásia. É evidente que o poeta destaca principalmente a actividade marítima, a gesta dos descobrimentos ("Por mares nunca dantes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana").
O segundo grupo inclui os reis que contribuíram directamente para a expansão do cristianismo e do império português ("foram dilatando / A Fé o Império"). Aqui é sobretudo o esforço militar que se evidencia ("andaram devastando").
No terceiro grupo incluem-se todos os demais, todos os que se tornem dignos de admiração pelos seus feitos, quaisquer que eles sejam.
A enumeração é apresentada em gradação descendente: em primeiro lugar, os envolvidos na expansão marítima; depois, os reis envolvidos na expansão militar; finalmente, todos os outros. Essa valorização relativa é confirmada pelo espaço textual: oito versos, para o primeiro grupo; quatro, para o segundo; dois apenas, para o terceiro.
No entanto, este terceiro aparece como um grupo aberto: nele se incluem não apenas heróis passados, mas todos aqueles que se venham a evidenciar no futuro. Note-se que, para os dois primeiros grupos, o poeta utiliza o pretérito perfeito, enquanto aqui recorre ao presente perifrástico - "vão libertando" .
Ao contrário das epopeias primitivas, aqui o herói é colectivo, o que o próprio título logo indica - Os Lusíadas. Por outro lado, na proposição, como vimos, a indicação dos heróis, além de ser desdobrada em grupos diferenciados, em cada um deles é utilizado o plural.
A proposição não é uma simples indicação dos seus heróis, mas obedece já a uma estratégia de engrandecimento dos portugueses. A expressão "por mares nunca dantes navegados" evidencia o carácter inédito das navegações portuguesas; observe-se o destaque dado à palavra "nunca". A exaltação continua com a referência ao esforço desenvolvido, considerado sobre-humano ("esforçados / Mais do que prometia a força humana").
Na segunda parte, esse esforço de engrandecimento continua, desta vez através de um paralelo com os grandes heróis da Antiguidade. O confronto é estabelecido com marinheiros famosos (Ulisses e Eneias), eles próprios heróis de duas epopeias clássicas, e conquistadores ilustres (os imperadores Alexandre Magno e Trajano). A escolha de navegadores e guerreiros não é inocente, visto que é exactamente nessas duas áreas que os portugueses se destacam. E quase a concluir, uma nota final, na mesma linha: "... eu canto o peito ilustre lusitano, / A quem Neptuno e Marte obedeceram". A submissão do deus do mar e do deus da guerra aos portugueses ("o peito ilustre lusitano") é uma forma concisa e muito expressiva de exaltar o valor do seu herói.

Análise da Invocação topo

E vós, Tágides  minhas, pois criado
          Tendes em mi um novo engenho ardente,
          Se sempre, em verso humilde, celebrado
          Foi de mi vosso rio alegremente,
          Dai-me agora um som alto e sublimado,
          Um estilo grandíloco e corrente,
          Por que de vossas águas Febo  ordene
          Que não tenham enveja às de Hipocrene .
          
          Dai-me uma fúria  grande e sonorosa,
          E não de agreste avena ou frauta ruda ,
          Mas de tuba  canora e belicosa,
          Que o peito acende e a cor ao gesto  muda.
          Dai-me igual canto aos feitos da famosa
          Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
          Que se espalhe e se cante no Universo,
          Se tão sublime preço cabe em verso.
          
          Os Lusíadas (I, 4-5)
Invocar significa "chamar em seu socorro ou auxílio, particularmente o poder divino ou sobrenatural" . Na proposição, o poeta apresentou o assunto que vai tratar e, dado o carácter excepcional, a grandiosidade desse assunto, sente necessidade de pedir às entidades protectoras auxílio para a execução de tarefa tão grandiosa.
Naturalmente, Camões, sendo um poeta cristão, não acreditava nas entidades míticas de que lançou mão. Utilizou-as sempre como um simples recurso poético. Isto é, a Invocação, para Camões, é mais um processo de engrandecimento do seu herói. De facto, é a grandiosidade do assunto que se propôs tratar que exige um estilo e uma eloquência superiores. Agora, precisa, não o "verso humilde", por ele tantas vezes utilizado, mas um "um som alto e sublimado". O carácter sublime do assunto justifica, portanto, a Invocação e é afirmado ao longo do texto, em mais do que uma expressão: "famosa gente vossa", digna de apreço pelos seus méritos guerreiros ("que a Marte tanto ajuda") é como o poeta se refere ao seu herói. E termina, insinuando que esses feitos são tão espantosos que, possivelmente, nem com o auxílio das Tágides poderão ser transpostos, com a devida dignidade, para a poesia ("Que se espalhe e se cante no Universo, / Se tão sublime preço cabe em verso.").
Desde já, registe-se que o nosso poeta não se limitou a invocar as ninfas ou musas conhecidas dos antigos gregos e romanos. Embora as "Tágides" não sejam criação sua, adoptou-as como forma de sublinhar o carácter nacional do seu poema. Independentemente do interesse universal que possam ter, todos os feitos cantados, todos os agentes, são portugueses. Isso tinha já ficado claro na Proposição, mas reforça-se essa ideia na Invocação. E, pela fórmula utilizada ("Tágides minhas"), identifica-se pessoalmente com esse nacionalismo, estabelecendo, através do possessivo, uma espécie de relação afectiva com as ninfas do Tejo. A força expressiva do possessivo é reforçada pela inversão e sua colocação em posição forte (coincidindo com a 6ª sílaba).
Tratando-se de um pedido, a Invocação assume a forma de discurso persuasivo, onde predomina a função apelativa da linguagem e as marcas características desse tipo de discurso - o vocativo e os verbos no modo imperativo - determinam a estrutura do texto:
E vós, Tágides minhas, (...)
          Dai-me (...)
          Dai-me (...)
          Dai-me (...)
E este esquema revela imediatamente um dos recursos estilísticos utilizados pelo poeta: a repetição anafórica, que identifica claramente o pedido e evidencia o seu carácter reiterativo.
Por outro lado, este tipo de discurso é sempre acompanhado de argumentos, implícitos ou explícitos, de forma a mais facilmente persuadir o receptor. O primeiro deles antecede o próprio pedido ("pois criado / Tendes em mi um novo engenho ardente") e a sua força é evidente: já que as ninfas lhe concederam essa nova inspiração, o desejo de cantar os feitos dos portugueses, então devem igualmente dar-lhe o estilo, a eloquência necessários. Este primeiro argumento tem como fundamento a obrigação moral: quem cria a necessidade, deve fornecer os meios.
E logo após a primeira formulação do pedido, surge o segundo argumento: "Por que de vossas águas Febo ordene / Que não tenham enveja às de Hipocrene." Agora, o fundamento psicológico é outro: o poeta procura despertar o sentimento de emulação nas Tágides, sugerindo que, ao atender o seu pedido, as águas do Tejo poderão igualar ou até suplantar a fama da fonte de Hipocrene, como inspiradoras de grandes poetas.
O terceiro argumento encerra o pedido: "Que se espalhe e se cante no Universo". Para que os feitos dos portugueses possam ser admirados no mundo inteiro, é necessário que as ninfas atendam o seu pedido. Neste caso, recorre a uma argumentação finalística: pressupõe-se que esses feitos são dignos de serem apreciados, mas para o serem é necessário um estilo extremamente elevado. Aliás, o último verso sugere a ideia de que os feitos dos portugueses são tão grandiosos que dificilmente poderão ser traduzidos em verso de forma adequada. Como se vê, a estratégia de engrandecimento do povo português, iniciada na Proposição, é retomada aqui, quase nos mesmos termos. Comparem-se estes dois últimos versos com aqueles com que encerra a primeira parte da Proposição:
Cantando, espalharei por toda a parte,
          Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
          
          Que se espalhe e se cante no Universo,
          Se tão sublime preço cabe em verso.
Vimos já que o poeta pede às Tágides o estilo elevado que a epopeia e a grandiosidade do assunto requerem; o "som alto e sublimado", exigido pelo "novo engenho ardente" que as ninfas colocaram nele. Como poeta experiente que é, sabe que a tarefa a que agora se propôs exige um estilo e uma linguagem de grau superior, por isso estabelece ao longo destas duas estâncias um confronto entre a poesia lírica, há muito por ele cultivada, e a poesia épica, a que agora se abalança.
POESIA LÍRICA verso humilde agreste avena frauta ruda POESIA ÉPICA novo engenho ardente som alto e sublimado estilo grandíloco e corrente fúria grande e sonorosa tuba canora e belicosa
Esse confronto serve-lhe para marcar a superioridade relativa da poesia épica sobre a lírica, o que uma análise medianamente atenta comprova facilmente.
Nota-se, desde logo, a maior quantidade de expressões dedicadas à poesia épica. Igualmente significativa é a abundância da adjectivação e, mais ainda, o recurso à dupla adjectivação. Por outro lado, o valor semântico desses adjectivos merece também alguma atenção: alguns afirmam o carácter elevado dessa poesia e do estilo correspondente (alto, sublimado, grandíloco, grande); outros, a musicalidade e sonoridade que os deve distinguir (corrente, sonorosa, canora); alguns, ainda, sugerem a exaltação típica dos feitos épicos (ardente, belicosa).
O efeito dessas expressões é, de certo modo, ampliado pelo recurso ao paralelismo sintáctico (substantivo + adjectivo + adjectivo), que conduz à imediata associação dessas expressões.
Até os instrumentos musicais associados a cada um dos tipos de poesia são significativos: à simplicidade da flauta, que associa à lírica, contrapõe a sonoridade guerreira da tuba, própria da epopeia.
E ao referir-se à "tuba canora e belicosa", acrescenta: "que o peito acende e a cor ao gesto muda". Com esse verso pretende transmitir a ideia de que o estilo épico exerce sobre o leitor um intenso efeito emotivo, semelhante à exaltação sentida pelos próprios heróis que vai cantar. Note-se o recurso à metáfora "o peito acende", que sugere uma espécie de fogo interior avassalador, reforçada pela inversão (colocação do complemento directo antes do verbo).

O Velho do Restelo topo

Mas um velho, de aspeito venerando,
          Que ficava nas praias, entre a gente,
          Postos em nós os olhos, meneando
          Três vezes a cabeça, descontente,
          A voz pesada um pouco alevantando,
          Que nós no mar ouvimos claramente,
          Cum saber só de experiências feito,
          Tais palavras tirou do experto peito:
          
          "-Ó glória de mandar, ó vã cobiça
          Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
          Ó fraudulento gosto, que se atiça
          Cúa aura popular, que honra se chama!
          Que castigo tamanho e que justiça
          Fazes no peito vão que muito te ama!
          Que mortes, que perigos, que tormentas,
          Que crueldades neles exprimentas!
          
          Dura inquietação d' alma e da vida,
          Fonte de desemparos e adultérios,
          Sagaz consumidora conhecida
          De fazendas, de reinos e de impérios!
          Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
          Sendo dina de infames vitupérios !
          Chamam-te Fama e Glória soberana,
          Nomes com quem se o povo néscio  engana.
          
          A que novos desastres determinas
          De levar estes Reinos e esta gente?
          Que perigos, que mortes lhe destinas,
          Debaixo dalgum nome preminente ?
          Que promessas de reinos e de minas
          De ouro, que lhe farás tão facilmente?
          Que famas lhe prometerás? Que histórias?
          Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
          
          Mas, ó tu, gèração daquele insano 
          Cujo pecado e desobediência
          Não somente do Reino soberano 
          Te pôs neste desterro e triste ausência,
          Mas inda doutro estado, mais que humano,
          Da quieta e da simpres inocência,
          Idade de ouro , tanto te privou,
          Que na de ferro e de armas te deitou:
          
          Já que nesta gostosa vaïdade
          Tanto enlevas a leve fantasia,
          Já que à bruta crueza e feridade
          Puseste nome "esforço e valentia",
          Já que prezas em tanta quantidade
          O desprezo da vida, que devia
          De ser sempre estimada, pois que já
          Temeu tanto perdê-la Quem a dá :
          
          Não tens junto contigo o Ismaelita ,
          Com quem sempre terás guerras sobejas?
          Não segue ele do Arábio  a Lei maldita ,
          Se tu pola de Cristo só pelejas?
          Não tem cidades mil, terra infinita,
          Se terras e riquezas mais desejas?
          Não é ele por armas esforçado,
          Se queres por vitórias ser louvado?
          
          Deixas criar às portas o inimigo,
          Por ires buscar outro de tão longe,
          Por quem se despovoe o Reino antigo,
          Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
          Buscas o incerto e incógnito perigo
          Por que a Fama te exalte e te lisonje
          Chamando-te senhor, com larga cópia ,
          Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
          
          Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,
          Nas ondas vela pôs em seco lenho !
          Dino da eterna pena do Profundo ,
          Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
          Nunca juízo algum, alto e profundo, 
          Nem cítara sonora ou vivo engenho,
          Te dê por isso fama nem memória,
          Mas contigo se acabe o nome e glória!
          
          Trouxe o filho de Jápeto  do Céu
          O fogo que ajuntou ao peito humano,
          Fogo que o mundo em armas acendeu,
          Em mortes, em desonras (grande engano!).
          Quanto milhor nos fora, Prometeu,
          E quanto pera o mundo menos dano,
          Que a tua estátua ilustre não tivera
          Fogo de altos desejos que a movera!
          
          Não cometera o moço miserando 
          O carro alto do pai, nem o ar vazio
          O grande arquitector  co filho , dando,
          Um, nome ao mar , e o outro, fama ao rio .
          Nenhum cometimento alto e nefando
          Por fogo, ferro, água, calma e frio,
          Deixa intentado a humana gèração.
          Mísera sorte! Estranha condição!"
    
    Os Lusíadas (IV, 94-104)
Este episódio insere-se na narrativa feita por Vasco da Gama ao rei de Melinde. No momento em que a armada do Gama está prestes a largar de Lisboa para a grande viagem, uma figura destaca-se da multidão e levanta a voz, para condenar a expedição.
O texto é constituído por duas partes: a apresentação da personagem feita pelo narrador (est. 94) e o discurso do Velho do Restelo (est. 95 a 104).
A caracterização destaca a idade ("velho"), o aspecto respeitável ("aspeito venerando"), a atitude de descontentamento ("meneando / Três vezes a cabeça, descontente"), a voz solene e audível ("A voz pesada um pouco alevantando"), e a sabedoria resultante da experiência de vida ("Cum saber só de experiências feito"; "experto peito").
Não foi certamente por acaso que Camões optou por esta figura e não outra. A figura do Velho do Restelo ressuma uma autoridade, uma respeitabilidade, que lhe permitem falar e ser ouvido sem contestação. As suas palavras têm o peso da idade e da experiência que daí resulta. E a autoridade provém exactamente dessa vivida e longa experiência.
No seu discurso é possível identificar três partes.
Na primeira (est. 95-97), condena o envolvimento do país na aventura dos descobrimentos, a que se refere de forma claramente negativa ("vã cobiça", "vaidade", "fraudulento gosto", "dina de infames vitupérios"). Denuncia de forma inequívoca o carácter ilusório das justificações de carácter heróico que eram apresentadas para esse empreendimento ("Fama", "honra", "Chamam-te ilustre, chamam-te subida", "Chamam-te Fama e Glória soberana"), sendo certo que tudo isso são apenas "nomes com quem se o povo néscio engana". E apresenta um rol extenso de consequências negativas dessa aventura: mortes, perigos tormentas, crueldades, desamparo das famílias, adultérios, empobrecimento material e destruição.
Esta primeira parte é introduzida por uma série de apóstrofes ("Ó glória de mandar", "ó vã cobiça". "Ó fraudulento gosto"), com as quais revela que o que ele condena é de facto a ambição desmedida do ser humano, neste caso materializada na expansão ultramarina. O sentimento de exaltada indignação manifesta-se, sobretudo, pela utilização insistente de exclamações e interrogações retóricas.
A segunda parte abrande as estrofes 98 a 101. É introduzida por uma nova apóstrofe, desta vez dirigida, não a um sentimento, mas aos próprios seres humanos ("ó tu, gèração daquele insano"). Se na primeira parte manifestou a sua oposição às aventuras insensatas que lançam o ser humano na inquietação e no sofrimento, agora propõe uma alternativa menos má, sugerindo que a ambição seja canalizada para um objectivo mais próximo - o Norte de África.
A estância 99 é toda ela preenchida com orações subordinadas concessivas, anaforicamente introduzidas por "já que", antecedendo a sua proposta de forma reiterada e cobrindo todas as variantes dessa ambição: religiosa ("Se tu pola [Lei] de Cristo só pelejas?"), material ("Se terras e riquezas mais desejas?"), militar ("Se queres por vitórias ser louvado?"). E aproveita para apresentar novas consequências maléficas da expansão marítima: fortalecimento do inimigo tradicional ("Deixas criar às portas o inimigo"), despovoamento e enfraquecimento do reino. E mais uma vez recorre às interrogações retóricas como recurso estilístico dominante.
Vem depois a terceira parte (est. 102-104). O poeta recorda figuras míticas do passado, que, de certo modo, representam casos paradigmáticos de ambição, com consequências dramáticas. Começa por condenar o inventor da navegação à vela - "o primeiro que, no mundo, / Nas ondas vela pôs em seco lenho!". Faz depois referência a Prometeu, que, segundo a mitologia grega, teria criado a espécie humana, dando assim origem a todas as desgraças consequentes - "Fogo que o mundo em armas acendeu, / Em mortes, em desonras (grande engano!". Logo a seguir, narra os casos de Faetonte e Ícaro, que, pela sua ambição, foram punidos. E os quatro versos finais da fala do Velho do Restelo sintetizam bem esse desejo desmedido de ultrapassar os limites:
Nenhum cometimento alto e nefando
          Por fogo, ferro, água, calma e frio,
          Deixa intentado a humana gèração.
          Mísera sorte! Estranha condição!

Simbologia do episódio do "Velho do Restelo" topo

Naturalmente, o "Velho do Restelo" não é uma personagem histórica, mas uma criação de Camões com um profundo significado simbólico.
Por um lado, representa aquela corrente de opinião que via com desagrado o envolvimento de Portugal nos Descobrimentos, considerando que a tentativa de criação de um império colonial no Oriente era demasiado custosa e de resultados duvidosos. Preferiam que a expansão do país se fizesse pela ampliação das conquistas militares no Norte de África.
Essa ideia era, sobretudo, defendida pela nobreza, que assim encontravam possibilidades de mostrarem o seu valor no combate com os mouros e, ao mesmo tempo, encontravam nele justificação para as benesses que a Coroa lhes concedia. A burguesia, por seu lado, inclinava-se mais para a expansão marítima, vendo aí maiores oportunidades de comércio frutuoso.
Por outro lado, se ignorarmos o contexto histórico em que o episódio é situado, podemos ver na figura do Velho o símbolo daqueles que, em nome do bom senso, recusam as aventuras incertas, defendendo que é preferível a tranquilidade duma vida mediana à promessa de riquezas que, geralmente, se traduzem em desgraças. Encontramos aqui um eco de uma ideia cara aos humanistas: a nostalgia da idade de ouro, tempo de paz e tranquilidade, de que o homem se viu afastado e a que pode voltar, reduzindo as suas ambições a uma sábia mediania ("aurea mediocritas", na expressão dos latinos), já que foi a desmedida ambição que lançou o ser humano na idade de ferro, em que agora vive (cf. est. 98). Neste sentido o episódio pode ser entendido como a manifestação do espírito humanista, favorável à paz e tranquilidade, contrário ao espírito guerreiro da Idade Média.
Assim, o episódio do "Velho do Restelo" está de certo modo em contradição com aquilo mesmo que Os Lusíadas, no seu conjunto, procuram exaltar - o esforço guerreiro e expansionista dos portugueses. Essa contradição é real e traduz, de forma talvez inconsciente, as contradições da sociedade portuguesa da época e do próprio poeta. De facto, Camões soube interpretar, melhor que ninguém, o sentimento de orgulho nacional resultante da consciência de que durante algum tempo Portugal foi capaz de se destacar das demais nações europeias. Mas Camões era também um homem de sólida formação cultural, atento aos valores estéticos do classicismo literário e imbuído de ideais humanistas. Se, ao cantar os feitos dos portugueses, ele dá voz a esse orgulho nacional, que sentia também como seu, na fala do "Velho do Restelo" e em outras intervenções disseminadas ao longo do poema, exprime as suas ideias de humanista.

"O Velho do Restelo" e o "Auto da Índia" topo

Enquanto expressão de uma atitude de oposição à expansão marítima para oriente, podemos relacionar a fala do "Velho do Restelo" às críticas expressas, dezenas de anos antes, por Gil Vicente, no "Auto da Índia". Nos dois casos encontramos a mesma visão anti-heróica, anti-épica, da expansão; a mesma perspectiva pragmática de quem não corre atrás de ilusões; o mesmo desejo de paz e tranquilidade; o mesmo receio do desconhecido.
Aquilo que Gil Vicente condena em tom satírico, di-lo também o "Velho do Restelo" num tom sério e austero. A crítica fundamental do "Auto da Índia" incide sobre o desamparo das famílias, o adultério das mulheres, provocados pela ida dos homens para a Índia, em busca de um enriquecimento fácil e, quase sempre, ilusório. E as palavras do "Velho do Restelo" parecem um eco desse auto - "Fonte de desemparos e adultérios".

Simbologia da "Ilha dos Amores" topo

Terminada a viagem do Gama e antes de regressarem a Portugal, o poeta dirige os nautas para a Ilha dos Amores, onde, por acção de Vénus e Cupido, receberão o prémio do seu esforço.
Trata-se de uma ilha paradisíaca, de uma beleza deslumbrante. A descrição do consórcio entre os portugueses e as ninfas está repassada de sensualidade. Os prazeres que lhes são oferecidos são o justo prémio por terem perseguido o seu objectivo sem hesitações.
Todo o episódio tem um carácter simbólico.
Em primeiro lugar, serve para desmitificar o recurso à mitologia pagã, apresentada aqui como simples ficção, útil para "fazer versos deleitosos".
Em segundo lugar, representa a glorificação do povo português, a quem é reconhecido um estatuto de excepcionalidade. Pelo seu esforço continuado, pela sua persistência, pela sua fidelidade à tarefa de expansão da fé cristã, os portugueses como que se divinizam. Tornam-se assim dignos de ombrear com os deuses, adquirindo um estatuto de imortalidade que é afinal o prémio máximo a que pode aspirar o ser humano.
De certo modo, podemos dizer que é o amor que conduz os portugueses à imortalidade. Não o amor no sentido vulgar da palavra, mas o amor num sentido mais amplo: o amor desinteressado, o amor da pátria, o amor ao dever, o empenhamento total nas tarefas colectivas, a capacidade de suportar todas as dificuldades, todos os sacrifícios. É esse amor que manifestam Gama e os seus homens; é ele que permite a tantos libertar-se da "lei da morte". É também esse amor que conduz Camões a "espalhar" os feitos dos seus compatriotas por toda a parte e tornar-se, também ele, imortal.
É esse amor, comum a si próprio e aos seus heróis, que o leva a dizer, na Dedicatória a D. Sebastião:
Vereis amor da pátria, não movido
          De prémio vil, mas alto e quase eterno;
          Que não é prémio vil ser conhecido
          Por um pregão do ninho meu paterno. 
O mesmo amor que leva Vasco da Gama a dizer, logo no início da narração que faz ao rei de Melinde:
Esta é a ditosa pátria minha amada,
          À qual se o Céu me dá, que eu sem perigo
          Torne, com esta empresa já acabada,
          Acabe-se esta luz ali comigo.